A expansão agropecuária no Brasil não precisa, necessariamente, ser acompanhada por devastação ambiental. Formar alianças multissetoriais pode ser a chave para que conservação e produção andem de mãos dadas. É o que mostrou o artigo “Governança Privada: Iniciativas Multissetoriais e Moratórias”, publicado, em maio deste ano, no livro “Desafios de Sustentabilidade da Agricultura Brasileira”. O capítulo foi escrito por André Guimarães, diretor executivo do IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia); Paulo Moutinho, pesquisador sênior na instituição; e Marcelo Stabile, ex-pesquisador do instituto.
No estudo, os pesquisadores fazem um levantamento histórico da expansão agropecuária no Brasil e do avanço na criação de leis e outros mecanismos de controle do Governo Federal. Em seguida, apontam como iniciativas conjuntas de estruturas, regras e políticas de comércio entre empresas nacionais e internacionais do ramo agropecuário podem ajudar a manter a biodiversidade de biomas como a Amazônia e o Cerrado, unindo forças e conhecimento em prol de um mesmo objetivo.
Para falar sobre o assunto, o Observatório de Comércio e Ambiente na Amazônia (OCAA) entrevistou André Guimarães, diretor executivo do IPAM, onde também atua como membro do OCAA. Guimarães explica que esse tipo de levantamento é um exemplo da importância de se ter uma sinergia entre academia e mercado. Isso porque se, por um lado, as instituições de pesquisa buscam atingir maior conservação e justiça social, por outro, as empresas estão sendo cada vez mais pressionadas para desenvolver soluções sustentáveis. «As empresas estão sentindo a necessidade de encontrar caminhos e muitas vezes estão com dificuldades. Nós, do IPAM, estamos sempre interagindo com esse setor. Essa união da ciência, da informação, com o setor produtivo, é muito poderosa».
Confira abaixo a entrevista:
Tem uma miríade de diferentes fóruns em que as empresas se organizam junto ao terceiro setor e à academia. Vamos pegar três exemplos: um fórum mais geral de discussão, que é a Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura, da qual o IPAM faz parte; uma ação contundente e concreta para reduzir o desmatamento, que é a «Moratória da Soja»; e ações mais voluntárias para nichos de mercado, que são as certificações de produtos, de serviços ou de cadeias produtivas.
A Coalizão é uma rede de mais de 50 entidades, reunindo terceiro setor, academia, setores privado e financeiro, dentre outros. Ela existe para promover discussões. A gente tenta aproximar os diferentes, colocar na mesa o mais radical do lado ambiental, com o mais radical do lado do agro. E, através desse diálogo, produzir manifestações públicas, tentando chegar em pontos de convergência.
Já o GTS (Grupo de Trabalho da Soja) age de forma bem diferente. É quem monitora o cumprimento da Moratória da Soja, um compromisso assinado por organizações do terceiro setor e empresas traders de grãos para que não comprem soja de áreas desmatadas depois de 2008. Essa é uma ação bem específica para evitar o desmatamento e teve efeito. Se não tivesse a Moratória da Soja estaríamos vendo níveis de desmatamento na Amazônia muito maiores do que estamos vendo hoje. Cumpriu um papel importante.
Existem esforços – e a gente citou alguns no artigo – de certificação. Ela é interessante, mas atende a nichos de mercado, que são importantes porque atendem uma determinada parcela de consumidores e inspiram outros setores concorrentes a subirem a barra das exigências.
Tanto para abrir mercado lá fora quanto para atrair capital temos que ter um bom relacionamento e boa credibilidade internacional. O Brasil é um país que depende da exportação para manter sua balança comercial. E, por ser muito exposto ao mercado internacional, somos dependentes das exigências do que os clientes querem. E o mundo está cada vez mais exigente. Agora, é a União Europeia que não quer mais comprar produtos que venham do desmatamento, mas amanhã pode ser a China ou a Índia.
Da mesma forma, somos um país com capacidade de investimento limitado, ainda em desenvolvimento. Por isso, para poder captar dinheiro lá fora para investir aqui dentro, temos que ter credibilidade. Então, uma segunda dimensão da nossa relação internacional diz respeito à atratividade para investimentos.
Servem para enriquecer o debate e construir soluções compactuadas (sejam políticas públicas ou compromissos). Na base de tudo isso, está a confiança, a capacidade de dialogar com diversos atores.
Os fóruns elevam o nível da discussão. Muitas vezes, as pessoas do campo (pequenos agricultores) ficam isoladas, com o contato restrito aos vizinhos e aos fornecedores de insumos. E o que a gente promove nesses fóruns – a Coalizão é um exemplo disso – é trazer os agricultores para conversar com a academia e representantes do governo para entenderem o cenário de como isso está funcionando.
Não acho que haja uma grande maioria de agricultores que são «vilões». São empreendedores que estão na ponta, muitas vezes sem apoio nenhum e enfrentando dificuldades. Cabe a nós chamá-los para conversar, mostrar que tem um outro jeito de prosperar, sem acabar com a natureza.
Esses espaços de discussão têm um papel fundamental de troca de informações. Para nós, que estamos nos escritórios, também é importante ver de perto como é a rotina de quem está na fazenda.
Em um outro exemplo, a Moratória da Soja foi boa para todos: o Greenpeace conseguiu projeção com a campanha; a sociedade civil se envolveu e continua se envolvendo no acompanhamento; para nós [IPAM e outras instituições] tem sido um bom exercício na prática de como funciona esse tipo de ação; e as traders ganharam visibilidade em demonstrar que estão fazendo processos sustentáveis.
No caso das certificações, por mais que ainda sejam de nichos de mercado, têm o potencial de serem balizadores para o consumo do futuro. É uma esperança que temos.
Esse tipo de certificação/estratégia de rastreabilidade custa caro. Não é barato ter controles. Imagina, dentro de uma pequena propriedade na Amazônia que tem umas 30 cabeças de gado, seria necessário um nível de controle desse gado que muitas vezes é inviável para o agricultor familiar. Às vezes é inviável também para o pecuarista médio, aquele que tem mil cabeças de gado. Se colocar um «brinco de orelha» em cada vaca que tem, o lucro vai embora. A margem de lucro da pecuária é muito pequena. Qualquer vacilo que se der o produtor pode «quebrar».
Então, não é uma coisa trivial. Não basta apenas o consumidor dizer que, se não tiver uma cadeia livre de desmatamento, não vai comprar. Isso pode criar dois mundos dentro do país: daqueles que têm condições de fazer essa rastreabilidade e daqueles que não têm dinheiro nem assistência técnica para isso.
É o que falo muito para os europeus: se você quer resolver o seu problema, crie regras de proibição da compra de produtos vindos de desmatamento. Mas se você quiser resolver O problema em si, venha para cá ver como funciona e, além de colocar a «barra» lá em cima do que você compra, venha investir naqueles que não têm condições de chegar lá, trazer tecnologias mais baratas de rastreabilidade, financiar assistência técnica na Amazônia e crédito subsidiado para melhorar a qualidade de produção.
Esses movimentos empresariais têm que ser mais difundidos. A sociedade tem que conhecer mais, para valorizar e aplaudir aqueles que estão fazendo a coisa certa e para cobrar aqueles que não estão fazendo. Assim, tem que ter divulgação, comunicação com o público e abertura maior para interagir com a sociedade e melhorar essas redes.
Grandes corporações que lideram o mercado precisam também dar mais exemplos. As empresas brasileiras tendem a manter essas ações mais escondidas, mas eu acho que deveriam colocar a cara a tapa, tomar mais decisões de coragem, ir um pouco além das regras.
O awareness, o conhecimento, talvez seja a coisa mais importante. A capacidade da sociedade entender o que significa aquele produto que ela está comprando. Eu acho que a grande maioria dos consumidores (não só do Brasil) não têm a menor ideia do que se passa por trás daquele produto. Se usa trabalho escravo ou não, se usa água demais… Da mesma forma, eu acredito que o ser humano, tendo a informação, vai usar na tomada de decisão. Pode ser que em um primeiro momento não tenha dinheiro para pagar a mais naquele produto certificado, mas no dia que ele tiver condições, já tendo a informação, ele vai poder fazer essa escolha.
O governo tem múltiplos papéis. Em primeiro lugar, ele cria regras, normas, leis, portarias, regulamentos, que vão permitir fazer algumas coisas e proibir outras. É o Estado que define o que os cidadãos e as empresas, naquele território, podem fazer.
A gente sabe que as leis, no geral, chegam depois da iniciativa privada. O processo legislativo é lento. Mas, ao mesmo tempo, o papel do Estado também tem que ser de indutor, de dizer onde queremos estar no futuro e o que precisa para chegar lá.
Nossa agricultura está diante de uma necessidade de ser revolucionada em várias dimensões: a gente não pode mais desmatar, ela tem que produzir mais por área, tem que usar cada vez menos insumos, tem que usar máquinas mais eficientes. Nós temos menos de uma década para fazer a revolução do fim do desmatamento. Esse é o recado que eu gostaria de deixar.