A regulação anti-desmatamento da União Europeia e suas implicações para o Brasil


em 13/01/2023
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No dia 5 de dezembro de 2022, a União Europeia (UE) deu um passo fundamental para a entrada em vigor de sua nova legislação anti-desmatamento: o Conselho da Europa e o Parlamento Europeu chegaram a um acordo em relação ao texto final da regulação, que busca vetar a importação, pelos países-membros do bloco europeu, de agro-commodities associadas a desmatamento em florestas tropicais. A aprovação do texto foi feita logo antes do início da Conferência de Biodiversidade da ONU (COP15), indicando as metas e o tipo de participação que a UE pretende ter nas discussões internacionais acerca de biodiversidade e clima.

A UE é a segunda maior importadora de desmatamento associado à commodities do mundo, ficando apenas atrás da China [1]. As principais commodities com risco de desmatamento importadas pelo bloco são soja, óleo de dendê e carne bovina. Segundo análise da WWF, essas importações seriam responsáveis por 16% do desmatamento em florestas tropicais do planeta [2]. O desmatamento gera perda de biodiversidade e aumento de emissões de gases de efeito estufa, contribuindo para a crise climática global.

A nova regulação define uma lista de produtos – óleo de dendê, carnes bovinas, soja, café, cacau, madeira e borracha, além de produtos derivados dessas cadeias, como móveis e chocolates – que deverão passar por um processo rigoroso de due diligence antes de adentrar o mercado europeu. Esses produtos foram selecionados a partir de um estudo prévio que identificou as principais commodities associadas a desmatamento impulsionado pela expansão de fronteiras agrícolas em florestas tropicais no mundo todo. A regra estabelece que esta lista de produtos será frequentemente revisada e atualizada, em conformidade com novos dados e padrões de desmatamento [3].

A lei estabelece obrigações e regras a serem cumpridas pelos importadores europeus destes produtos. Os importadores deverão comprovar que seus produtos não foram produzidos em áreas desmatadas legal ou ilegalmente após 31 dezembro de 2020, além de estar em conformidade com a legislação ambiental de seu país de origem. Para tal, as empresas importadoras terão de coletar dados geográficos relativos aos locais de produção das commodities, garantindo e disponibilizando informações de rastreabilidade para toda a cadeia produtiva.

Ter o ano de 2020 como nota de corte de desmatamento representa desdém e retrocesso em relação aos esforços anteriores de combate ao desmatamento, sobretudo ilegal, em florestas tropicais. Exemplo disso é que a legislação permite que produtores agrícolas que tenham desmatado ilegalmente suas propriedades até a data de corte estipulada encontrem a possibilidade de exportar suas commodities para a UE, mesmo tendo agido contra o Código Florestal Brasileiro, em vigor desde 2012.

Ainda, a regulação aplica-se apenas ao desmatamento de florestas tropicais, tais como definidas pela FAO, deixando para avaliação futura – neste caso, um ano depois da entrada em vigor da regulação – a inclusão, em seu escopo, de outros biomas também ameaçados pela expansão das fronteiras agrícolas e pelo desmatamento. É o caso do Cerrado brasileiro – bioma responsável por 15% da soja importada pela UE, e que tem apenas 26% de sua área protegida pela lei proposta [4]. Apesar de os europeus considerarem incluir other wooded lands(outras terras florestadas) na lei, a adição desses outros biomas não foi aprovada na versão da regulação recentemente adotada.

Outro ponto que ficou para discussão futura é a inclusão na legislação da responsabilização de instituições que financiam o desmatamento. De acordo com estudo do Global Witness, entre 2016 e 2020, bancos europeus lucraram 401 milhões de euros em negócios relacionados a desmatamento [5].

Além disso, a regulação irá estabelecer um sistema de benchmarking de países exportadores de produtos oriundos de florestas tropicais, classificando-os de acordo com o risco de desmatamento e degradação florestal decorrente da produção das commodities listadas acima. Em países de maior risco, a due diligence e as obrigações das empresas serão maiores e mais rigorosas, enquanto em países com menor risco, esse processo será mais simples. O texto final da proposta de regulação inclui também aspectos de direitos humanos ligados a desmatamento, garantindo o direito a consultas livres, prévias e informadas a povos indígenas, conforme a Resolução OIT n. 169. Em países classificados como de maior risco, uma atenção especial será dada à questão de direitos humanos e proteção de povos indígenas.

Não parece restar dúvida de que a adoção desta nova regulação europeia representa um passo relevante para o enfrentamento global do desmatamento, além de sinalizar a atuação pioneira da União Europeia na mobilização de mecanismos de política comercial para promover objetivos climáticos e ambientais.

As implicações da regulação, uma vez em vigor, tendem a ser significativas para as exportações brasileiras dos produtos cobertos pelas suas obrigações. Há algumas razões para essa avaliação.

Em 2020, as commodities listadas pela legislação europeia representaram 29% (US$ 60,8 bilhões) das exportações totais do Brasil e 36% das exportações brasileiras para a UE (US$ 11,15 bilhões). Alguns destes produtos detêm participações expressivas no mercado europeu, ocupando a primeira posição entre os fornecedores extra-europeus daquele mercado. Desses, carnes bovinas, couros e peles (bovinas) e soja apresentam elevado potencial de associação com riscos de desmatamento reais ou percebidos na Europa.

Além disso, de acordo com a análise do Cindes, com exceção do Vietnã, nos países concorrentes do Brasil – Argentina, Uruguai, EUA, entre outros – os riscos de associação entre desmatamento e produção para exportação são baixos, indicando que o Brasil pode ser, entre esses países, o mais afetado pela regulação.

Ademais, a eventual classificação do Brasil como país de alto risco de desmatamento no sistema de benchmarking que a regulação europeia estabelecerá representa um risco reputacional não menor para as exportações do país, que pode dificultar o acesso de produtos brasileiros a outros mercados internacionais, para além do europeu [6].

Em síntese, a proposta de regulação é um marco na história das relações entre agendas comercial e ambiental/climática no mundo, atestando a disposição da UE para mobilizar instrumentos de política comercial com vistas à concretização de objetivos ambientais e climáticos. Ela pode dar uma importante contribuição para aumentar a sustentabilidade das cadeias de valor sob seu escopo e para combater o desmatamento das florestas tropicais.

Seus impactos sobre as exportações brasileiras dos produtos selecionados tendem a ser relevantes. Os riscos já foram aqui apontados, mas há também uma oportunidade para o Brasil: de fato, se o país concentrar sua produção de commodities em áreas livres de desmatamento, pode vir a consolidar-se como beneficiário deste novo cenário regulatório mundial.

Instrumentos de incentivo para atores que já atuam em prol da conservação florestal e mecanismos de cooperação técnica e de desenvolvimento entre Europa e países atingidos pela regulação são bem-vindos para que os exportadores acelerem sua conformidade com a regulação e fomentem o desenvolvimento de cadeias mais sustentáveis.

Essa avaliação positiva não pode obviar a constatação de que, tratando-se de regulação unilateral da UE, a sua implementação requererá, por parte dos parceiros comerciais do bloco, um acompanhamento cuidadoso, de forma a combater o uso protecionista do instrumento e a garantir a compatibilidade deste com as regras multilaterais de comércio (OMC).

 


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